segunda-feira, 28 de setembro de 2009
LENDA DE FREI JOÃO HORTELÃO
Frei João Hortelão foi um cidadão real, nascido na localidade de Valverde, em data incerta, uma vez que apenas João Baptista Vilares, na Monografia do Concelho de Alfândega da Fé, refere o ano da sua morte, em 1499, data que parece não condizer com alguns estudos recentes sobre a peça de ourivesaria religiosa, a "Cruz de Valverde", a que se liga todo o seu percurso "lendário". Na verdade, este devoto cristão tem uma biografia cujos percursos por terras de Portugal e Castela são pouco conhecidos, podendo concluir se que a faceta da lenda resulta mais do imaginário popular do que dos verdadeiros acontecimentos. O seu carácter religioso e as suas virtudes pessoais, onde não faltou sequer o facto de ser oriundo de famílias pobres e ligadas à pastorícia na aldeia natal, foi sendo, ao longo dos séculos, envolvido em histórias e acontecimentos que ninguém pode hoje comprovar, incluindo o espírito profético que o levou a adivinhar o ano da sua morte. Entre as muitas "façanhas", quando ainda jovem, conta-se o seu "jeito" especial para a pastorícia dizendo se, como escreve João Vilares, "que deixava o gado à volta do seu cajado e ia ouvir missa aos povoados da outra margem do rio Sabor. Quando regressava, o gado lá estava no mesmo sítio quieto e manso. O amo, sabendo isto, proibiu lhe a passagem do rio na barca, mas ele continuou na sua missão atravessando a corrente, servindo se da sua capa para barco. O patrão, não gostando de tais ausências, despediu o pastor que se dirigiu então para Castela, sempre mendigando pelo caminho Na sua descrição J. Vilares não mencionou que no lugar onde Frei João Hortelão deixava o gado cresceu, segundo a tradição popular, uma cornalheira de dimensões fora do vulgar, transformada em árvore frondosa, cuja folhagem se mantém verde durante todo o ano, ao contrário do que acontece com esta espécie, que na região não atinge mais de dois metros de altura, como arbusto, de folha caduca! Talvez "a outra margem do rio Sabor" não corresponda à verdade histórica e estejamos a falar da antiga povoação de Cilhades, na margem direita, que dá para a encosta onde se encontra a tal cornalheira; bem vistas as coisas, estamos a falar do concelho de Alfândega da Fé, criado por carta de foral de D. Dinis em 1294, cujas fronteiras o separavam de Santa Cruz da Vilariça exactamente naquela zona, pelo local designado por "rebentão", sendo que toda esta área foi pertença de Alfândega até à reforma dos concelhos de 1855! Mas o espírito "milagroso" deste nosso Frei João Hortelão não se ficou por aqui. Ainda na sua freguesia de origem, existe outro local conhecido por "bardo do Frei João"; o motivo é semelhante: de acordo, uma vez mais, com a tradição popular, naquele local deixava frequentemente o seu rebanho, sem as habituais guardas de madeira, e os animais não saíam do local, de tal forma que ainda hoje o mesmo se mantém sempre com verdura! Despedido do seu emprego, Frei João Hortelão terá rumado até Castela e ficado pela vila de Ledesma, (Salamanca) tomando o hábito de leigo e entrando para o convento de Santa Marina. Diz J. Vilares, na obra citada, que "por meio de esmolas, conseguiu edificar a igreja matriz de Ledesma onde se conserva, segundo a tradição, uma gota de leite da Virgem e uma madeixa do seu cabelo tudo obtido pelo santo varão". Fernando Pereira, num estudo recente, nega categoricamente estas afirmações, nomeadamente no que respeita à construção daquela igreja. Mas é indiscutível que Frei João Hortelão viveu em Ledesma, onde está sepultado, e em cuja localidade também se confirmam registos populares da sua santidade, nomeadamente aqueles que dizem respeito aos seus dotes para afastar os pássaros das sementes das hortaliças que semeava, actividade que, aliás, acabou por lhe dar o nome! No entanto, a grande façanha que é atribuída pela lenda a Frei João Hortelão resulta de algo muito mais espantoso e menos explicável ainda, porque contraditório com o seu viver conventual: "com bocadinhos de prata que ia guardando na oficina onde trabalhava fez esta formosa cruz", a Cruz Processional de Valverde, símbolo maior da ourivesaria do concelho de Alfândega da Fé e que a população de Valverde guarda com um autêntico sentimento de Fé, de misticismo e de patriotismo. Fernando Pereira fez uma investigação aprofundada sobre esta peça e trouxe ao nosso conhecimento alguns aspectos que importa referir. Em primeiro lugar, a Cruz de Valverde foi, efectivamente, trabalhada em Castela. Não em Ledesma, mas provavelmente em Astorga e o respectivo ourives é conhecido, o que foi possível identificar através do punção existente na peça. Em segundo lugar e de acordo com o mesmo autor, "pelas características técnicas que apresenta, esta cruz e o par de galhetas, não poderão ir além da segunda década do século XVI"H; ou seja, a ser verdadeira a data da morte de Frei João Hortelão, não existe coincidência entre a vida do mesmo e o fabrico da peça, ainda que as distâncias temporais, por tão curtas e tanta falta de informação, não nos permitam decidir categoricamente não existir relação directa entre os acontecimentos. Uma coisa é certa: aquele estudo provou que a Cruz de Valverde foi executada numa oficina registada e tem os brasões de armas das famílias Velascos e Avellaneda, ambas de Castela, ligadas por laços matrimoniais, mas nenhuma com ligações conhecidas a Valverde. Fica assim a hipótese, que continuará a alimentar a lenda, também corroborada por Fernando Pereira: veio a Cruz, pelas mãos de Frei João Hortelão, parar a Valverde?! E se assim foi, como explicar que peça tão importante, representativa de uma arte específica da ourivesaria castelhana do século XVI, tenha chegado até esta distante e pequena povoação do Nordeste Transmontano? Que haverá de mais interessante do que manter as dúvidas por desconhecimento histórico...e perceber que as Lendas não se mudam no imaginário popular, por maior que seja o nosso conhecimento científico?!
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
A Sul:
ResponderEliminarDonzelas roxas poncítias desmaiam, mas basta do sol um ténue raio
e reanima-se a rua; se não tivéssemos bolsos as mãos despedaçavam-se;
saltitam avezinhas p’lo empedrado ensaiando uns tímidos devaneios;
gaivotas pairam voos altos, brancuras rompem entre neblina;
rafeiros vão perdidos em remanescente ruína, já antes noite petrificada;
salpicando relva, estremece uma límpida água musical, que purifica;
a negrilhos em fila prolongando a avenida parecem ascender
para os olhos sonhadores do poeta as folhas num amarelento matiz;
gotículas do orvalho à clara luz refervidas cristalizam lacrimosas;
aéreas flâmulas transmitem morse, vento, murmúrios libertários;
na nogueira o estorninho desfaz o bico em açúcar a pissitar;
caudalosa a fluir o alto júbilo a hora grita escancarada.
Angelo Ochoa